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Ao voltarmos, nos recolhemos ao salão da" Igreja"
cada qual escolheu um canto. No centro do salão ficava a roda da medicina dividindo o espaço ao meio.
Fiquei próximo de meus amigos Ig (Cadu) e Adriana.
A ayahuasca que iríamos tomar era três ou quatro vezes mais concentrada do que o Daime comum ingerido nos eventuais trabalhos.
Léo esclareceu que serviria uma dose igual e “caprichada” – um pouco acima de 50 ml – para todo mundo e depois a ayahuasca estaria à disposição a qualquer hora para quem quisesse tomar. Era só se levantar e servir a si próprio.
Estava ansioso. Não via a hora de tomar o vinho das almas. De alguma forma, acreditava que a ayahuasca iria ser uma espécie de recompensa, ou alívio, devido o sufoco que passara na Inipi (Mal sabia eu que a tenda do suor foi só o início, uma espécie de preparo para aquilo que ainda estava por vir).
Quando chegou minha vez de tomar o chá, estava muito entusiasmado.
Percebi que os olhos do Léo estavam muito cristalinos e mais pareciam duas esferas de vidro. Ele encheu o copo até a borda estendendo-o até mim. Peguei o copo, ofereci ao poder e bebi-o de uma só vez, em uma golada.
Voltei para o meu lugar e sentei–me de pernas cruzadas. Após uns cinco minutos o efeito começou a emergir, rápido e avassalador, diferente de outras ocasiões em que demorara cerca de trinta a quarenta minutos. Meu corpo começou a ficar leve.
Por um instante tive a impressão de que não seria como de costume, a força estava vindo rapidamente, parecia que ia me engolir a qualquer momento. Um vácuo foi se abrindo instantaneamente em minha mente. Um medo tênue ligeiramente se insinuava prestes a abalar meus alicerces racionais.
Estava usando uma blusa rubro-negra, com desenhos levemente geométricos que, além de acentuar minha percepção que começava a se ampliar, prendiam minha atenção a tal ponto, que fui perdendo a consciência das coisas ao meu redor.
Num piscar de olhos estava totalmente imerso numa visão profunda da minha blusa. Minha cabeça pendia para baixo e observava os mínimos detalhes, cores e formatos que se estendiam pela lã. Meu corpo fazia uma junção perfeita com a roupa e o chão de cimento do salão. Parecia que ambos eram a mesma coisa.
Meu corpo, minhas roupas, a posição em que estava sentado e o chão se tornaram homogêneos. Não existia diferenciação. De repente meu corpo pareceu criar a forma de um cubo, estava se igualando ou reproduzindo o risco quadrado feito no piso.
Então, para o meu espanto, o microcosmo se tornou macrocosmo. Percebia o meu corpo cúbico e via a descida que se formava da altura do meu peito até minhas coxas como um imenso arranha-céus. Senti como se estivesse em uma montanha-russa. Minha atenção prendeu-se no desfiladeiro surreal que se formava em meu peito e fui descendo velozmente por ele, ao meio das exóticas formas geométricas dos desenhos em minha blusa.
Nesse ínterim, a força da ayahuasca já tinha me absorvido, e eu era uma forma cúbica fazendo parte da simetria do piso.
Quando estava prestes a chegar no final do desfiladeiro que terminava nos meus quadris, percebi que subiria pela montanha que formavam minhas coxas. Mas, antes de ser impulsionado pela subida, a velocidade da experiência tomou conta da minha consciência e, quando menos imaginava, já estava viajando em uma velocidade indescritível por um túnel pigmentado nas cores de vermelho e branco.
Talvez, a rapidez com que era dragado desse a definição de cor. De certo modo, parecia estar viajando por partes de órgãos internos ou minhas próprias veias. Sentia certo sufoco, mas que dado à velocidade, não havia meios de definir ou refletir sobre a sensação. Tinha a certeza de que iria colidir a qualquer momento. E isto foi desvanecendo minha consciência.
A última coisa de que me lembro, antes da suposta colisão, foi a percepção rápida de uma espécie de substância que fervia como uma sopa e cobria todo o meu campo de visão. Ao centro dessa substância de cor amarelo fosco uma bolha apareceu devido à fervura e se transformou em um olho iridescente que estourou diante de mim, e no mesmo instante fui transportado para um lugar desconhecido.
Estava no meio de um imenso espaço negro, não percebia meu corpo, apenas o espaço negro que cobria o meu campo de visão. Parecia estar lá apenas em consciência, sem qualquer vestígio de massa corpórea. Sentia-me suspenso no ar.
Tudo era vazio e negro.
De repente alguma coisa à minha esquerda (?) não muito longe de onde estava, chamou minha atenção. Ao focalizar minha visão para identificar o que era, me assombrei. Vi um ser completamente bizarro de perfil para mim.
Percebia-o da cintura para cima. Seu corpo era truculento. Sua pele cor de mel e grossa como a de um paquiderme. Usava uma camisa de mangas compridas de cor marrom que colava no corpo, como se fosse uma segunda pele, deixando expostos os contornos incrivelmente definidos de seus músculos.
Tinha um maxilar largo e extremamente forte. Seu crânio era calvo. No lugar do nariz, encontrava-se um bico do tamanho de um palmo, que fazia uma curvatura semelhante à uma tromba de um elefante. No lugar dos olhos existia um explícito orifício frontal na forma de um triângulo.
O ser lembrava um ciclope.
Do seu único olho piramidal irradiava uma luz forte como o néon de cor azul celeste. A estranheza do Ser dava-me náuseas; embora sentisse o meu corpo físico fora de ação, podia intuir a sensação.
Depois de algum tempo de observação senti que o estranho Ser estava me puxando. Comecei a ser impelido até ele como que atraído por um ímã. Não tive como evitar ou não sabia. Quando me tornei ciente, minha consciência estava se acoplando na parte posterior de seu crânio, especificamente na base superior da coluna vertebral (ou nuca), na posição entre o cerebelo e a glândula pineal.
Lá, nesta região, vibrava uma luz em formato esférico na mesma cor que emanava de seu olho frontal (azul celeste). Quando me acoplei naquela área, a sensação foi algo comparado a cair de cabeça no fundo do mar, ficando inconsciente por alguns segundos. Lembro-me ainda de perceber algumas ondas tênues de cor índigo fluindo em várias direções.
Ao retomar minha consciência, percebi que minha visão estava sendo projetada de dentro para fora do ser, através do seu olho piramidal. Como que expelida, minha consciência jorrou para o espaço afora. Sentia minha percepção envolta por uma camada azul celeste. Comecei a avançar pelo espaço negro e vazio lentamente; foi então que percebi que estava num Universo (?), onde podia ver estrelas, espirais e nebulosas. Um Espaço negro salpicado de pontinhos brancos.
Prossegui a jornada que parecia sem fim. Em um dado momento tive a impressão de que algo, lá na frente, estava se aproximando de mim. Minha condição era de puro testemunhar até este momento. À medida que se aproximava foi apresentando forma para minha percepção.
De início lembrava-me um espelho gigante vindo do nada como se fosse colidir comigo, mas quando se aproximou mais, pude perceber o que verdadeiramente era.
Fiquei perplexo ao avistar uma gigantesca pirâmide azul celeste transparente como cristal, onde só se delineavam os contornos. No centro da pirâmide havia um imenso olho também transparente e azul, só que vivo!
Ao perceber que a pirâmide se aproximava e estava prestes a se chocar comigo, me senti desorientado, não sabia o que fazer ou o que poderia acontecer, no entanto ela já estava diante de mim. E, num piscar de olhos, me vi mergulhando dentro dela, e a sensação se comparava a de estar entrando em uma onda. A vibração do impacto me deixou inconsciente.
Quando me recuperei percebi que uma nova pirâmide igual à primeira se aproximava, causando-me a mesma sensação depois do novo impacto.
Só depois da terceira foi que percebi serem várias e sucessivas, incontáveis pirâmides, vindo em minha direção. O espaço que antes para mim se apresentava infinito, agora parecia estranhamente finito.
Vendo as pirâmides que vinham em minha direção, uma atrás da outra, tive um insight. Pareceu-me que estava dentro de um espaço delimitado entre dois espelhos curvos que o refletiam indefinidamente, causando a impressão de que o espaço era infinito e de que eram muitas as pirâmides.
Quis encontrar lógica em tudo aquilo e acabei achando que não fazia sentido algum. Entrei numa espécie de colapso mental, meus pensamentos ficaram emaranhados.
Enquanto isso, as pirâmides gigantescas não paravam de se chocar comigo, cada vez mais rápido, mal tinha tempo de esperar uma e já tinha outra pronta a me engolir.
Esse episódio foi acontecendo sucessivamente e a cada mergulho na pirâmide ficava, de certa forma, inconsciente. Não tinha tempo de me recuperar do choque, pois quando percebia já tinha outra pronta para me transpassar.
Tive a angustiante certeza de que aquilo não terminaria nunca ou que estava preso naquele processo infindo.
Logo uma sensação de náusea foi tomando conta de mim. Não entendia como podia ter tal sensação, já nem me lembrava mais do meu corpo físico. Minha consciência, que estava vivenciando a experiência, parecia totalmente desassociada dos sentidos fisiológicos, contudo tinha a clara impressão de que meu estômago estava se revirando como ondas.
Minha mente quis tomar o comando mas, quando me concentrei nas pirâmides que vinham em miríades ao meu encontro, como espelhos refletindo infinitamente suas imagens uma dentro da outra, ela (minha mente) teve uma espécie de blackout (Pane). Com isso, tive a estranha impressão de que meu corpo físico estava tendo convulsões e se contorcendo. Acreditei que, se voltasse vivo, voltaria todo distorcido.
Um medo estranho fazia-me acreditar que estava tendo um ataque epiléptico.
Então em meio a uma pressão insuportável, toda a experiência visionária explodiu intensamente diante do meu ser, em miríades de fragmentos cristalinos e multicoloridos por todas as direções, como fogos de artifícios.
Em seguida, um imenso caleidoscópio surgiu cobrindo meu campo de visão, apresentando formas geométricas das mais complexas e perfeitas não imaginadas que giravam em todas as direções desordenadamente, mas que no final se encaixavam perfeitamente uma na outra, como peças de uma engrenagem criando uma ordem de seqüência. A predominância das cores nas formas geométricas, que eram diáfanas como os cristais, era amarelo e verde musgo.
A sensação de que estava tendo um ataque epilético aumentou a tal ponto que as formas geométricas começaram a tremer e delas vi surgirem braços e pernas, que se contorciam e tremiam, semelhantes às pinturas cubistas.
Quis voltar, mas não tinha controle algum sobre as visões, tinha certeza de que meu corpo estava reagindo a tudo aquilo com algum tipo de colvulsão.
Quando por fim a visão partiu como dragada por um vácuo, senti minha consciência voltando e, num segundo, abri os olhos.
Estava deitado na posição de decúbito dorsal, meu corpo não tremia, muito menos tive convulsões ou estava tendo ataque epilético. A única coisa que sentia era uma certa náusea e o meio do meu corpo parecia estar fazendo ondas.
O efeito da ayahuasca ainda estava muito forte, resolvi levantar-me e me assustei.
Estava enxergando tudo em 3D.
Essa visão peculiar seria algo fascinante se tivesse algum controle sobre o efeito que provocava tal percepção mas, como não era o caso, tudo se tornava bizarro e me impressionava profundamente.
Resolvi sair do salão, acreditei que se vomitasse o efeito psicoativo amenizaria e poderia controlá-lo. Mal tive tempo de ultrapassar a porta e caí de joelhos no jardim de rosas. Violentas ânsias sacudiram o meu corpo mas não consegui vomitar.
Enfiei o dedo na goela, porém nada saiu.
Voltei para o lugar onde estava. Um terror pesava sobre mim. Enrolei-me num cobertor e fiquei sentado com os joelhos próximos ao peito. Olhei para minha amiga Adriana, ela estava sentada com o tronco extremamente ereto, parecia uma estátua de sombra, logo as pessoas que também estavam na mesma posição se transformaram em estátuas sombrias.
Voltei meus olhos para o Padrinho Cidão, ele estava encostado na parede, mas minha atenção só se concentrava em alguma parte especifica do seu rosto, e este se transfigurava em algo medonho. Recusei-me a ver o que estava vendo, então olhei para Léo Artése, que estava ao seu lado e, pareceu-me que estava fazendo gestos estranhos com as mãos e com a cabeça, como se fosse um louco, totalmente desvairado.
Pensei ser eu que estava ficando maluco!
Abracei as minhas pernas junto aos joelhos e pensei estar perdido. Comecei a lamentar comigo mesmo, me sentia um idiota por estar ali. Um sentimento de autopiedade se apossou de mim. Dizia a mim mesmo a todo instante que tudo que queria era sair vivo dali.
Sentiria-me estúpido e culpado se morresse em tais circunstâncias.
Logo um campo negro e cúbico me envolveu. Comecei a chorar e gemer, mas não saía uma lágrima sequer. Estava seco. Tudo que queria era chorar até não mais aguentar, no entanto não havia lágrimas.
Deitei e me encolhi na posição fetal como uma criança e uma sucessão de visões estranhas e obscuras invadiram minha mente. Foram horas sem fim com visões das mais bizarras e desconexas possíveis. Algumas velavam algo estranhamente secreto em mim, outras eram formas indescritíveis, desconhecidas, mas que de algum modo, eclodiam de algum aspecto enterrado em minha memória, como lembranças trancadas no porão.
Outras até exalavam o odor de hospital, infecção, recordações de uma época de infância em que fiquei internado.
Entre o turbilhão de imagens, uma visão em especial me marcou. Eu estava me vendo de pé observando uma espécie de dossel de cor verde brilhante com três metros de altura, feito de pedras de uma beleza discretamente exótica e peculiar. Depois, esse mesmo dossel era a minha lápide e estava vendo as minhas inscrições impressas nela.
Finalmente começou a amanhecer. Passei a madrugada inteira deitado do lado direito do corpo gemendo e esperando o efeito do chá passar. Lembro-me de abrir os olhos quando o Léo bateu o tambor próximo ao meu rosto.
Estava programado para irmos todos fazer uma caminhada pela mata, mas pareceu-me que as pessoas não estavam tão animadas ou ainda estavam sob o efeito da ayahuasca.
Não enxergava mais em 3D, mas minha percepção ainda estava bastante aguçada, minha mente apresentava-se cristalina e com uma lucidez incomum.
Mas não pude aproveitar essa vantagem de forma positiva, pois toda a experiência que se desenrolou foi muito forte, estava chocado e tudo me impressionava.
O simples contemplar das belas flores roxas das Quaresmeiras e ipês me apavorava. Não conseguia perder a impressão que a percepção ampliada da minha atenção causava.
Isto ainda seguiu por algum tempo, talvez uns quarenta minutos.
Lembro-me ainda de olhar para as árvores do sítio e ver um vento forte sacudindo-as. Fiquei preso nos seus movimentos até que elas criaram rostos, formas e pareciam estar me chamando. Fiquei imóvel e observando até que aquela última impressão, que me manteve paralisado de medo quase que a madrugada toda, fosse desaparecendo por completo.
Por fim, já não me sentia tão amedrontado e estava mais aliviado, tinha sobrevivido.
Levantei-me. Deviam ser quase sete da manhã. Desci o pequeno morro, um pouco abaixo da "Igreja" e fiquei de pé observando a floresta e a neblina que se alastrava por toda região.
Percebi que o Léo, de tempo em tempo, ficava me observando, como que vigiando para saber se estava tudo bem comigo.
Fiquei, por um momento que pareceu infinito, observando a neblina tomando conta da mata. Minha mente era um vazio só, uma calma, uma paz.
Não sentia necessidade de nada, tudo que precisava estava diante de mim...
Tudo que necessitava estava dentro de mim...
O silêncio interior!
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