quarta-feira, 27 de julho de 2011

Tutau: A história de um remanescente Avá-Canoeiro



O que venho aqui relatar é uma passagem da história pessoal de um dos últimos remanescentes daquela que, em séculos passados, foi uma grande nação indígena, o povo Avá-Canoeiro.

No início de janeiro de 1999, quando estive na Ilha do Bananal (TO) entre os índios Javaé – que se autodenominam Povo Iny (inã) - na aldeia de Canoanã, me deparei com um grupo, uma família de índios Avá-Canoeiros vivendo na aldeia dos Javaé. 


Logo fiquei sabendo de suas trágicas histórias, e minha ex-companheira e eu ficamos muito amigos dessa família. Viviam lá na época Tutau, sua irmã, sua filha Macakíra e seu filho Agadimi. Todos os índios Javaé respeitavam muito o velho índio Tutau, por ser grande caçador e exímio na arte do arco e flecha. Sempre numa hora ou noutra ele nos envolvia com suas histórias sobre suas grandes caçadas. O difícil era entender o que ele dizia, pois misturava língua portuguesa com expressões da língua javaé e, em alguns momentos, palavras do seu próprio dialeto.

Mas, para relatar um trecho muito especial de sua vida, primeiro gostaria de fazer um resumo de quem foram e quem hoje são os Avá-canoeiros. Estima-se que na época do “descobrimento” os Avá-canoeiros eram entre dois e três mil indivíduos, e hoje restam apenas nove: a família de Tutau na Ilha do Bananal (TO) e mais seis indivíduos vivendo em Minaçu (GO).

Os Avá-Canoeiro tiveram uma longa história de enfrentamentos com a população mineradora pioneira desde que esta se instalou na região do alto Tocantins por volta do século XVIII, reinando absolutos antes disso. Com o incremento das diversas represarias, alguns grupos, a partir de 1820, empreenderam uma marcha para noroeste em busca de regiões menos conturbadas. 


Os restantes continuaram em sua região de origem, refugiando-se nas serras inexpugnáveis dos municípios de Minaçu, Santa Teresa e Cavalcante, entre outros, onde permaneceram até hoje, tentando escapar aos ataques da população regional. O último deles, por volta de 1960, terminou com seu último grupo local relativamente grande. Os sobreviventes, quatro pessoas, praticamente se entregaram aos regionais em 1983. Os que migraram para noroeste alcançaram a Ilha do Bananal, no Araguaia, no ínicio do século. 

Passaram a entrar em atrito com os Karaja e Javaé, seus ocupantes. Seu trajeto é marcado por choques com a população regional dos locais por onde passavam. Os remanescentes do grupo do Araguaia foram capturados por uma expedição da FUNAI em 1973, numa surpresa feita ao acampamento dos índios. Foram transferidos do acampamento onde moravam para a aldeia de Canoanã dos Javaé. São eles a família do velho Tutau, o “temido caçador”.

Muitos dos índios Karaja e Javaé, inclusive o próprio chefe de posto da FUNAI da época em que lá estive, faziam muitas brincadeiras com o Velho Tutau com relação ao fato de que ele tinha sido pego no laço, porque era “índio brabo”. Algo muito marcante em Tutau era a impressão diametralmente oposta que se tinha de seu aspecto “selvagem” ao olhar para ele, com a candura e a pureza que se sentia ao estar ao seu lado. Era uma pessoa de riso fácil, que irradiava inocência. 

Tanto sua fisionomia quanto a de seus filhos, Agadimi e Macakíra, lembrava os afrescos da civilização Maya. 
Olhos extremamente oblíquos e negros como uma obsidiana e uma tez marrom-avermelhado escura. Algo que me chamava a atenção era seu cabelo negro-azulado; embora ele aparentasse estar próximo dos 70 anos, não se percebia um só fio de cabelo branco.

Certa ocasião Tutau se aproximou, deitou na rede e, depois de ter fumado seu cachimbo, pegou seu maracá e começou a entoar uma linda canção na sua língua (Um dialeto do Tupi-Guarani). Fiquei surpreso e comovido e refletindo por que ele se sentia tão à vontade perto de nós e, a despeito de não ter tido autorização do chefe de posto para gravar a canção que ele entoava, tudo ficou registrado na minha memória. Após vinte dias de contato com o povo “Iny”, entre uma aldeia e outra, chegou a hora de irmos embora. 

Confirmamos a todos com quem fizemos amizades que voltaríamos no ano seguinte, e assim aconteceu.

Em janeiro do ano 2000, voltamos à Ilha do Bananal. Era maravilhoso estar de volta, mas dessa vez nos restringimos a ficar apenas na aldeia Canoanã. 


Foi muito bom sentir que nossos amigos e grandes hospitaleiros índios Javaés ficaram contentes em ver os “paulistas” outra vez entre eles, e nós em rever aquele grande povo.

Dessa vez, tivemos um contato mais próximo com a família de Tutau, quase todos os dias atravessávamos o rio javaé com as canoas e nos dirigimos até a Fundação Bradesco para pegar manga. Era uma festa. Tutau ia sempre na frente guiando-nos.

Certa manhã, saí da minha barraca iglu e fui sentar-me próximo das margens do rio Javaé. Esperava encontrar Tutau, pois trazia comigo uma cachimbo feito por hippies, muito bem trabalhado, que ganhara meses antes do meu irmão mais novo. Pretendia presentear Tutau com o cachimbo em sinal de minha admiração por ele.

Quando ele apareceu, fiz-me próximo e sem dizer nada lhe estendi o cachimbo dando a entender que era um presente. Tutau arregalou os seus olhos oblíquos e com ar de admiração soltou um “úia”, como se estivesse vendo uma obra de arte valiosíssima. Pegou o cachimbo e sem dizer nada foi para sua cabana. Fiquei sentado num tronco de árvore que se estendia no chão e fiquei contemplando o fluir das águas do rio Javaé. 

Alguns minutos depois, Tutau volta com o cachimbo que tinha lhe dado juntamente com o seu antigo cachimbo, feito e talhado por ele próprio com a madeira de uma árvore específica.

Sentou ao meu lado e me deu em troca o seu cachimbo. Fiquei tão admirado quanto ele, não esperava por isso; não sabia nem como agradecer, mas percebia que era algo natural de sua parte, algo inerente à sua cultura, generosamente dar algo em troca quando for espontaneamente presenteado.

Pediu-me fumo, enchi o seu cachimbo novo e o meu que acabara de ganhar. Sentia-me honrado de poder fumar com o cachimbo que ele usava ha anos. 


Ficamos algum tempo “pitando”, mas logo ele disse que preferia ir fumar na sua cabana deitado na rede. Gostaria que ficasse, mas não tinha sentido qualquer objeção da minha parte. Fiquei fumando até ficar tonto, depois guardei o cachimbo.

No dia seguinte, entre as 11:30 e 12:00, voltei a sentar no tronco da velha árvore e observar os movimentos da água e seu fluir. Quando menos espero, Tutau aparece silencioso e senta ao meu lado. Como era de costume não disse nada, apenas fiquei em silêncio em sua companhia, esperando falar apenas se ele começasse uma conversação (algo que realmente não acreditava que ele faria).


Mas, para minha surpresa, do nada ele começou a narrar mais uma das suas histórias de caça, sobre quando errou na mira não acertando em cheio o quati e este caiu sobre suas costas mordendo-o e causando-lhe uma ferindo profunda. Mostrava-me mesmo a cicatriz, a qual curou passando o couro de um calango, esquentado na brasa, e estancando o sangue com ele. 

Continuou narrando suas histórias que já tinha me contado diversas vezes, como se nunca antes tivesse contado. Eu apenas as ouvia como antecipando final delas na minha memória. Nesse tempo de convivência podia entender muito bem o que Tutau dizia, mesmo de forma enrolada. Tudo era extremamente inteligível para mim: o que de início era um grande desafio, agora era algo claro e natural.

Depois de ouvir o relato resumido de suas histórias, fiquei esperando que ele fosse embora como fazia de costume, mas dessa vez alguma coisa diferente havia dentro dele. De início não percebia nada de diferente, mas logo vi uma expressão em seus olhos que nunca vira antes - era algo profundo, parecia estar mergulhado em algum tipo de reflexão. De repente Tutau voltou a falar, mas dessa vez, para minha surpresa, não era mais uma história de caçadas, e sim a história de seu pai, Yapoty.

Contou que sua família veio descendo, seguindo as margens do rio Araguaia até as paragens da Ilha do Bananal. Neste deslocamento foram encontrando em seus caminhos fazendas de criação de gado: Um alvo fácil para caçadores nômades como os Avá-Canoeiro. Disse que seu pai Yapoty acostumou-se a flechar o gado que, logicamente, para ele era um animal que estava livre e era alimento para a família.

Não tinha ideia de que animais tivessem dono, ainda mais animais que invadiam docilmente seu território de caça. Com o tempo os fazendeiros passaram a perceber o abate de gado e a perseguir sua família. Numa dessas perseguições um dos fazendeiros feriu de morte a esposa de Yapoty (Mãe de Tutau). Yapoty, revoltado e imitando a estratégia do inimigo, vingou-se flechando a filha do fazendeiro, causando sua morte. 

O fazendeiro indignado organizou uma tropa armada para emboscar os “temíveis índios selvagens”, matadores de brancos. Tiveram sucesso e encurralaram e mataram Yapoty. 

Tutau e seus familiares remanescentes continuaram seu nomadismo vivendo e se casando mata adentro. Até serem pegos no laço - ele, sua irmã e seus filhos. Até onde sei sua mulher morreu de alguma “doença de branco”.

Quando Tutau terminou de narrar a história, sua expressão profunda de tristeza invocou um silêncio que antes, em momento algum, tinha experienciado: Um silêncio que expressava o sentimento e o respeito que eu não poderia colocar em palavras. Os seus olhos distantes pareciam buscar no horizonte respostas, ou algo que pudesse confortar sua alma, que resgatasse a memória ancestral do seu povo, de sua origem.

Contemplei e compartilhei com ele o silêncio que emanava daquele momento, ou que vinha como única resposta para sua tristeza. Depois disso, como se nada tivesse acontecido, ele se levantou, sorriu como uma criança e foi caminhar.

Fiquei por algum tempo refletindo sobre a história de seus pais e sua também. 


No mesmo dia, ao entardecer, estávamos atravessando o rio – numa canoa iam os filhos de Macakíra e noutra íamos eu minha ex-companheira Cléo e Macakíra – para apanharmos mangas. Em dado momento, displicentemente contei à Macakíra a história que ouvira de seu pai, Tutau, a respeito de seus familiares. 

Disse isso a Macakíra como se fosse a coisa mais natural do mundo, e ela me fitou perplexa, dizendo em seguida que achava estranho ele ter falado a respeito, pois não era do seu costume, aliás ele relutava em responder sempre que o questionavam sobre sua história. 

Disse a Macakíra que não tinha perguntado nada, simplesmente ele começou a me contar e eu mesmo não entendia o porquê.

Pois bem, não falamos mais nisso, passaram-se os dias e nos divertimos e aprendemos com a interação com aquelas pessoas tão sofridas e ao mesmo tempo tão alegres, joviais, sempre prontos a rir de qualquer coisa, hospitaleiros. Avá-Canoeiro, Javaé e Karaja. Todo o povo Iny.

Ainda guardo comigo o maracá que ganhei de Macakíra ao nos despedirmos e o cachimbo de madeira que troquei com o velho e grande caçador Avá-Canoeiro Tutau. 


Mas o que eu guardo com mais carinho é a lembrança de sua pessoa e de sua família.




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